quinta-feira, 9 de junho de 2016

O super-homem de Anderson Freire e o Liberalismo Teológico

Por Marco Telles

Não é novidade que a música gospel atual partiu para terrenos escuros e apodrecidos. Os princípios e valores expressos claramente em seus versos é de despertar “ânsia análoga a ânsia que se escapa da boca de um cardíaco”[1]. Qualquer cristão genuinamente convertido e conectado às doutrinas ortodoxas da fé cristã, tem vivenciado uma terrível agonia em sua alma durante os períodos de louvor na maioria das igrejas modernas.

Sofro de refluxo e gastrite há alguns anos, por vezes não consigo dormir tamanha dor que sinto apertar no peito quase sufocado. Ainda sim, preferiria uma crise de refluxo a ter os meus ouvidos submetidos ao engodo despejado pela boca dos milionários gospels em um de seus shows (aliás, “cultos”, como dizem).

Recentemente fui submetido a ouvir uma das canções do maior compositor gospel do Brasil, o famoso Anderson Freire. Ninguém compõe tantos hits como ele. A maior parte dos “refrões chicletes” do meio gospel saiu de sua mente atrofiada pela ignorância da cultura pop. Não é um homem, é uma máquina de fazer dinheiro. Ele descobriu a fórmula da música que faz o povo cantar aos berros. Uma mistura de sertanejo com a velha batida simétrica do pentecostalismo de Cassiane. A cereja desta fórmula é um molho de pop-rock. O conteúdo principal, a auto-afirmação. Não mais a auto-ajuda. Auto-ajuda é coisa do passado. Quem precisa de ajuda? Eu não! Eu sou demais, deixe-me cantar um pouco sobre mim pra você perceber o super-homem que sou:

 Oh, Deus de Israel
Eu sei que não vim a este mundo
Pra adorar outro Rei
Os leões estão rugindo sem parar
Meu louvor incomodou
A todos que são contra Ti, oh, Jeová
Nada pode intercalar o louvor do meu coração
Dos manjares eu abro mão, os palácios não quero, não!
Eis-me aqui como Daniel, com os olhos focados no céu
Com o risco de morrer, pois o que importa é Lhe obedecer
Senhor, não vou dividir minha adoração
Exclusivo é o meu coração
Vivo só pra Ti, não abro mão do céu
Até diante da morte prefiro ser fiel
Eu não temo espanto noturno
Nem seta que voe de dia
Nem peste que ande na escuridão
Nem mortandade que assole ao meio-dia
Não importa quantos caiam do meu lado
Direita, esquerda, eu sou protegido
Se eu for fiel, eu moverei o céu
Ele envia anjos para me guardar [2]

Percebem quem é o ser ativo desta canção? “Eu posso, eu consigo, eu faço, eu quero, eu não quero”. Deus está presente no discurso, mas, passivamente. O indivíduo está diante de Deus louvando a si mesmo e a sua capacidade de resistir fielmente até diante da morte. O atrevimento é tamanho que o indivíduo chega a não apenas tomar as rédeas de sua própria vida, mas toma as rédeas do céu! Chega ao ponto de definir as decisões celestiais: “Se eu for fiel, eu moverei o céu”.

Deus está apenas olhando. Este homem é tão fiel, resistente e sábio em suas próprias escolhas, que Deus não precisa agir ativamente. O que Deus faz por este homem não é mais do que obrigação. Deus age de forma reativa à fidelidade deste super-homem. O protege, envia anjos e o guarda. Mas por quê? Porque este homem é fiel, resiste e não divide seu coração que (pasmem) é exclusivamente só de Deus!!! Ele conseguiu cumprir cabalmente a lei e os mandamentos.

Jhonathan Edwards, pobrezinho, com suas firmes resoluções [3] diante das quais suava a camisa, movido de um santo desejo por passar, um dia que fosse, em plena piedade, com o pensamento conectado exclusivamente no que fosse celestial, sentiria santa inveja da conquista do super-homem de Anderson Freire.

Mas esta é na verdade a tendência pós-moderna da hinologia atual. Não mais louvores a Deus, antes, louvores a si mesmo diante de Deus, o observador passivo.

“Então eu direi: ô u ô abra-se o mar
E eu passarei, pulando e dançando em tua presença”[4]

“Remove a minha pedra, me chama pelo nome
Muda a minha história, ressuscita os meus sonhos”[5]

Nestes dois exemplos interpretados pela Aline Barros, vemos mais uma vez o super-homem ativamente conduzindo não apenas a sua história, mas também dirigindo o próprio Deus no que Ele deve fazer ou não. Na primeira, se faz menção ao episódio de Moisés. O pobre Moisés correu para Deus e pediu socorro. Não ordenou o que Deus deveria fazer. Deus foi o ser ativo da história, Moisés, não fazia ideia do que aconteceria quando se colocou diante daquele mar. Só uma coisa ele conhecia: “Deus pode, se quiser, nos salvar!”. Agora, na versão 2016 desta história, o ser ativo não é Deus. É o super-homem que diz ao mar: “Abra-se!” E o mar lhe obedece! Quem é este que até os ventos e o mar lhe obedecem? É o super-homem gospel. Mas é incrível notar que este super-homem faz e acontece diante da face do próprio Deus (que audácia): “E eu passarei pulando e cantando em TUA PRESENÇA”. Deus está ainda no cenário, mas é coadjuvante, secundário.

No segundo exemplo, também de interpretação da Aline Barros, porém composição do Anderson Freire (o dono da patente desta fórmula), mais uma vez vemos o super-homem destorcendo o real acontecimento bíblico. Pobre de Lázaro estava morto. Não havia esperança alguma para ele. Nem pensava em pedir socorro, por que morto não pensa, nem fala. Estava ali, passivamente jazido em seu túmulo. Até que o grande Rei do universo, o verbo que disse: “haja luz!” e houve luz, bradou do lado de fora: “Lázaro, sai para fora!”. Lázaro saiu, para a glória do nome de Jesus. Na versão 2016 da história, no entanto, morto fala, grita, canta e ordena. Jesus, passivamente deve obedecer e fazer um milagre diante do comando urgente do super-homem de Anderson Freire.

Este super-homem é mesmo precioso! Vale mais que ouro puro de ofir [6]! Aquela visão pessimista e caducada que a bíblia expressa acerca da condição do homem, a qual recebeu o nome, pelos pais da igreja, de doutrina da “Depravação Total" [7], já foi removida da prateleira cristã. O homem do passado poderia ser esse ser desprezível, miserável (nas palavras de Paulo [8]), caído, mas o super-homem superou esta condição! O homem do passado era objeto da ira de Deus, enegrecido, cego, tolo, nu, pobre, inimigo de Deus. Mas ele evoluiu (aleloias)! Agora é valioso, alvo da mais agigantada brandura e apreços divinos. O homem do passado sucumbia diante do pecado, mas o super-homem gospel (de Anderson Freire) não sucumbe! “O Pecado não consegue"[9] com ele. Adão perdeu tudo o que era de beleza e marca divina nele, foi manchado, maculado, e amaldiçoado. O Super homem não. No caso dele: “O pecado não consegue esconder a marca de Jesus que existe” nele. Os efeitos devastadores, perniciosos, degenerativos e humilhantes do pecado não fazem muita coisa com o super-homem.

É curioso estarmos chamando este personagem ousado, corajoso, decidido e auto-suficiente, que Anderson Freire expressa em sua canção, de “super-homem”, afinal, em outra de suas canções, intitulada “Mapa do Tesouro”, ele afirma: “ninguém é super-homem”. Parece uma incongruência. Mas não é. Mesmo nesta canção onde ele parece estar diminuindo o brilho do ser humano, uma frase celebre do refrão vai deixar claro que ele ainda esta falando do seu super-homem: “O calvário declarou, com o sangue de Jesus, para o mundo o seu valor”. É ele! O super-homem de Anderson freire! Tão valioso que a cruz não é nada mais que um outdoor para a exibição de seu valor e preciosidade intrínsecas. Alguém esta olhando para o evento da cruz pelo lado avesso! Na cruz, o que fica evidente a todos os seres em todos os tempos, não é o valor do homem e o quanto ele merece ser reconhecido. Antes, a cruz é o maior testemunho acerca de Deus. Ela revela sua ira, seu furor, sua misericórdia, sua graça, sua glória, seu poder. É para que os anjos e os homens o adorem pelos séculos vindouros.

A grande verdade, caros leitores, é que, quanto à filosofia, Anderson Freire não é nada inventivo. Ele faz um eco dos teólogos liberais (saiba ele disso ou não), que já propunham há mais de um século a evolução do homem espiritual.

Ao decorrer do século XIX, com a chegada súbita do que foi conceituado mais tarde como “iluminismo”, a teologia ortodoxa sofreu grande impacto chegando a convulsionar diante das novas demandas intelectuais e filosóficas, as quais não apenas se arriscaram a tocar no sagrado coletivo, até então intocável, mas também viraram as costas para o senso comum religioso que aceitava passivamente as antigas premissas ortodoxas.

Diante deste cenário o mundo teológico viu as firmes e sólidas colunas da tradição cristã começarem a rachar e esfarelar em velocidade assustadora. O que antes parecia eternamente firme começa a ceder diante do historicismo, do cientificismo e do racionalismo.

Rudolf Bultmann, por exemplo, propunha uma desmitologização do texto sagrado, a partir de ferramentas filosóficas. E para quê? Para que o homem pudesse experimentar uma nova revelação, de uma nova possibilidade de existência humana menos dependente do divino e do misticismo. O que ele esperava com essa descoberta de uma nova possibilidade de existência humana? Ele esperava (para usar seu próprio termo) que o homem se AUTENTICASSE. Deveria sair das sombras da inautenticidade, e vir para a luz da autenticidade.

Teilhard de Chardin, um teólogo cientista, que se esforçou arduamente para casar a fé com a razão, foi ainda mais longe que Bultmann e sugeriu que o homem estava em evolução (assim como declarava a ciência moderna de Darwin), e sua evolução seria até que ele atingisse a forma independente e auto-suficiente de Cristo. Ele chamou Jesus de “Cristo-Ômega”. De modo que, todo homem um dia será como Cristo: auto-suficiente, independente, moralmente equilibrado e sem necessidade alguma. Em outras palavras, todo homem se transformaria na raridade proposta por Anderson Freire.

Dietrich Bonhoeffer, o teólogo contemporâneo ceifado antes do tempo, que lançou bombas atômicas dentro da teologia filosófica e prematuramente morreu antes de dar maiores explicações sobre suas teses, razão pela qual alguns o consideram liberal, sugere que o mundo chegou ao que ele chamou de “Maior Idade”. Veja o que ele diz:
O homem deve aprender a lidar consigo mesmo em todas as questões de importância sem apelar à “hipótese operacional” chamada “Deus”[...] está ficando claro que tudo avança muito bem sem “Deus” -, e, na verdade, tão bem quanto antes.[10]
O mundo que alcançou a maior idade de Bonhoeffer é um mundo sem Deus, sem ídolos, um mundo que não adora a nada. Um mundo totalmente despojado de ilusões religiosas. Para Bonhoeffer, a igreja não poderia se opor a esta realidade instaurada no mundo, antes, melhor seria considerá-la. Resistir a isto seria, nas palavras de Bonhoeffer, um “grave desserviço à fé”. Bonhoeffer pretendia que o homem se visse autônomo, sem mais necessitar das muletas da adolescência religiosa.

Bem, com toda essa ajuda de Anderson Freire e do movimento gospel, não vai demorar muito para, de fato, alcançarmos a autonomia e auto-suficiência do mundo da maior idade de Bonhoeffer. Ainda estamos na presença de Deus. Já não precisamos mais dele, é um fato, mas ainda estamos na presença dele. O convidamos para o nosso espetáculo como um coadjuvante. Logo, muito em breve, ele será cortado do elenco.

Citações:

[1] ANJOS, A. Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
[2] Fidelidade, composição de Anderson Freire.
[3] Jonathan Edwards foi um dos maiores avivalistas do século XIX, fortemente influenciado pelo movimento dos puritanos, em determinado momento de sua vida escreveu o que ficou conhecido como “As Firmes Resoluções de Jonathan Edwards”, um compilado de 70 resoluções que ele pediu graça à Deus para cumprir ao longo de sua vida. Tratava-se de decisões acerca do seu profundo desejo em ser dominado por uma vida piedosa de comportamento moral, espiritual e ético equilibrados. Até o fim de seus dias ele lutou para cumprir, nem que fosse por um único dia, tais resoluções, embora, por vezes, tenha relatado da enorme dificuldade em se viver diante de um padrão tão elevado de santidade.
[4] Vitória no Deserto, interpretada por Aline Barros, composição de Luciano Moreira. Embora não seja de Anderson Freire, reflete a mesma ideologia que hoje se encontra na maior parte das canções do gospel popular.
[5] Ressuscita-me, interpretada por Aline Barros, composição de Anderson Freire.
[6]  Referência à canção Raridade, um dos maiores sucessos de Anderson Freire, que carrega de maneira escancarada a filosofia humanista, desprezando de forma veemente as doutrinas ortodoxas acerca do pecado e do homem.
[7] Depravação Total é o primeiro ponto dos chamados “5 Pontos do Calvinismo”. Um sistema de compreensão bíblica aceito como ortodoxo diante da Teologia Reformada.
[8] Romanos 7
[9] Mais uma vez, referência à Raridade, de Anderson Freire.
[10] Bonhoeffer, pag. 382

***

Marco Telles é cantor e ministro do Evangelho. Lidera uma Comunidade Reformada e é membro da Igreja Presbiteriana do Bairro dos Estados, João Pessoa-PB.

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