terça-feira, 8 de julho de 2014

O poder simbólico de minha fé

Quando Jesus disse que a marca autenticadora de que somos representantes do Evangelho aqui na terra seria o amor estendido uns aos outros, toda possibilidade de representação simbólica externa e distorcida de quem somos assemelhou-se ao que Ele mesmo elencou como SEPULCRO CAIADO. É como se a argamassa que nos une como pedras vivas fosse imensamente mais importante do que a aparência do prédio - e é de fato!

Mas a história nos conspira contra. Por isso, a fé que ostento passa a ter símbolos que me diferenciam dos meros mortais. Como assim? Vamos pensar?

(Dica: o parágrafo abaixo pode ser uma ironia)

Penso que a fé que ostento é vista pelo mundo através do adesivo do carro que possuo – “Propriedade de Deus”. A fé que ostento está no meu terno e gravata finos, para “glória de Jesus” . A fé que ostento está no itinerário por onde ando e na lista de coisas que não faço por ser um religioso excluso. A fé que ostento está em algum pastor televisivo que me representa nos debates de auditório. A fé que ostento está nos astros da música evangélica que não deixam a desejar diante dos astros do mundo. A fé que ostento está no tamanho de minha igreja e na quantidade de fieis que habitam por lá. A fé que ostento está na construção que fiz de mim mesmo, a saber, meus dons e capacidades específicas que tenho como diferencial dentre os meus pares. E por aí vai... pois a fé que ostento me faz ser o cara mais abençoado dessa terra, a saber que quem me olha, logo nota. Tenho algo diferente.

O que nos chama atenção diante dessa ironia é notar que o Evangelho enquanto personificação simbólica, insistentemente feita por parte dos cristãos, acaba por se apresentar como uma cultura que fanfarreia e quer seu espaço. De uma forma geral, pensemos como os estereótipos do cristão na atualidade podem ser fabricados por aqueles que têm maior domínio e influência sobre os fieis, e que tipo de deformação podemos ter como resultado de tanta tentativa “de ser e ostentar o que nunca Jesus quis que se fosse e se ostentasse”.

Para este artigo, tomei emprestado um pouco do pensamento sociológico de Pierre Bourdieu[1] o qual trata do poder simbólico como sendo um poder de construção da realidade que tende a estabelecer um (novo) sentido do mundo e das coisas e que supõe uma concepção homogênea e implícita de concordância entre as inteligências. Estes símbolos são instrumentos de integração social e enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação eles tornam possível o consenso acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social por onde se posicionam as classes – neste caso, desejo pensá-lo como segmentos, dentre eles, o segmento evangélico.

Pensar no poder para além da economia e política nos faz notar que as produções simbólicas também se relacionam com interesses das classes que dominam e das que desejam dominar – logo é razoável que um segmento (novamente permitam-me tratar o conceito de classe como segmento, pois não pretendo me ater centralmente ao viés econômico) produza através de suas estruturas os seus símbolos para dominação e legitimação de si mesma. Quer um exemplo disso? “A som livre toca e você adora”. Mas não pára por aí. Basta notar quanto poder simbólico tem se espalhado pelas nossas cidades através dos mega templos cujas imagens dos apóstolos, bispos e pastores adesivadas nos vitrais “impõem” certo espaço conquistado; basta notar quantos movimentos evangélicos têm surgido (avivamentos, batismos de dons, conferências apostólicas) na pretensão, não de se implantar o reino de Deus, mas de sacramentar sua marca enquanto produto. E, portanto, note, tais símbolos depois de fabricados agora passam a gerir a realidade e a organizar suas segmentações em busca de um domínio, que, diga-se de passagem, não tem nada a ver com a proposta do ser “sal e luz” outorgada por Cristo.

Voltando a Bourdieu, percebo que o mesmo compreende que uma cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante, assegurando uma integração e uma comunicação entre os membros dessa classe e ao mesmo tempo os distinguindo de outras classes. Daí surge um importante conceito desenvolvido posteriormente por ele: a distinção. Isto nos sugere uma breve reflexão: como os “produtores dominantes” da cultura evangélica brasileira têm fabricado a imagem do evangélico através dos diversos meios de comunicação? Como os evangélicos desavisados aqui em baixo buscam se apresentar a sociedade a partir da identificação com esses símbolos?

(A título de moderação desta minha simples análise, ressalto que se para Bourdieu as produções simbólicas são como instrumentos de dominação no campo de produção simbólica que regem uma luta simbólica entre as classes, para tanto nesta breve crítica dispenso tal perspectiva, e que se registre aqui que não me interessa a análise de releitura marxista do autor, muito embora a considere debatível para outro momento)

Fica-nos o desafio de nos examinarmos para que não usemos de modo algum as capas brilhosas de religião.Que possamos ser, ao invés de ter. Que possamos mais dar, do que ostentar. Que possamos nos guiar não por símbolos desbotados de Evangelho, mas pelo Cristo que nos convidou a sermos como Ele e andarmos como Ele andou.

Pensemos.

***

A culpa desse post é do Ivandro Menezes, por numa conversa ter citado Bordieu e me feito voltar a reler suas perspicazes análises do poder simbólico.

[1] Sociólogo Francês autor da obra: O Poder Simbólico, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1992.

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