terça-feira, 4 de novembro de 2014

Matou Deus e foi ao cinema evangélico

por Joêzer Mendonça

Eu bem que queria que fosse diferente, mas “Deus não está morto” é um filme que, embora queira partilhar uma mensagem profunda, é raso de espírito. Deus não está morto, mas a qualidade do cinema evangélico não passa bem.

Não vou falar da performance dos atores, da fotografia ou dos diálogos, todos de um primarismo que se nivela a um seriado bíblico da TV Record. Isso até seria uma marca das produções religiosas nacionais (de qualquer crença). Aliás, muito espectador dessas produções invoca uma virtude cristã, como a condescendência, para assisti-las.

Nada disso, porém, seria um problema se a densidade da mensagem que se deseja divulgar fosse transmitida com acuidade e grandeza de espírito e não só com suposta nobreza de intenção.

O enredo trata de personagens evangélicos que são perseguidos e humilhados, mas têm uma luz celestial que lhes afasta de toda incerteza ou falta de racionalização crítica. Parece que são capazes de superar doenças com doses de cânticos e orações.

Já os não cristãos são vilões caricatos que, se não acreditam na existência de Deus, é porque eles sofrem com traumas do passado ou de autossuficiência arrogante, já que todas as evidências estariam aí para providenciar a aceitação lógica da fé.

Não importa se o personagem é ateu ou cristão, ele será mostrado por meio de ideias preconceituosas e estereotipadas. Ninguém parece de carne e osso, mas apenas fantoches que se revelam como um tipo de evangélico falacioso e um espécime de ateu presunçoso.

Entre tantos equívocos, o filme acaba mostrando uma noção nada cristã de Deus: a do ser vingativo que não suporta que ninguém discorde d’Ele, ainda que esse alguém não seja pior do que aqueles que professam a fé n’Ele.

A menina islâmica se converte ao cristianismo? Há um pai autoritário que a punirá. O rapaz é humilhado por causa de sua retórica evangélica? Seu opressor será punido. O professor não acredita na obviedade da existência de Deus? O próprio Deus o punirá.

Ao final, os humilhados sentem o gosto de vitória, o que demonstra mais uma ideia do evangelicalismo atual que repete chavões triunfalistas de prosperidade pessoal. É o típico pensamento que circula em adesivos colados nos carros e em tantos refrões gospel.

Se a intenção era falar com quem não é cristão, o filme mostra um envelhecido e antipático discurso em relação a quem não enxerga a vida pelo mesmo prisma. Se era rebater Nietzsche, o bigodudo filósofo alemão é abordado de forma superficial e rasteira. Se o objetivo era pregar para os iniciados, duvido que todo protestante vá comprar essa retórica que promete uma solução fácil para questões de resolução bem complexa.

É uma pena que, na tentativa de ser didático, o filme esbarre em argumentos simplistas. Dá a entender que, se a Bíblia tivesse sido escrita pelos roteiristas de filmes gospel, a fé cristã não teria motivado nem um aleluia de Handel, quanto mais a persistência e fidelidade milenar dos cristãos.

Joêzer Mendonça é doutor em Musicologia e professor de História da Música na PUCPR. No blog Nota na Pauta escreve sobre arte, mídia e religião.

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