quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Tom Jobim e os Salmos

Gerson Borges

Pouca gente lê biografia no Brasil. Aliás, pouca gente lê por aqui. Fato. Livro é caro, a tecnologia deixa nosso lazer cada vez mais online e rouba descaradamente o maior e melhor ócio criativo: a “leitura por prazer, por deleite”, a que realmente conta e molda a alma1.

Poucos de nós conhecem (detalhadamente) a história de grandes brasileiros como Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o nosso querido Tom Jobim. Muita gente, aqui e mundo a fora, conhece sua maravilhosa música. Canções como “Garota de Ipanema, Wave” (“Vou te contar”) e “Águas de Março” só tocam menos nas rádios americanas e européias do que Lennon & MacCartney (mas aí não vale, gravaram em inglês). E quantos tesouros à nossa espera em obras como “Antônio Carlos Jobim – um homem iluminado”, escrito por sua irmã Helena Jobim2! Devorei o texto muito bem escrito, afetivo e cheio de coisas maravilhosas para a minha reflexão costumeira sobre a afinidade entre criatividade e espiritualidade, beleza e verdade, cultura brasileira e “Graça comum”, como diriam os teólogos reformados. Como epígrafe, nada mais do que uma pérola, nesse depoimento sobre sua vocação artística a uma faculdade carioca:

“A criação é um ato de amor, alguma coisa que se comunica a toda a humanidade. Um artista não pode fazer nada que contribua para piorar o mundo. Acho que tenho deveres para com as pessoas com quem convivo”.

Ou ainda, uma meditação que nos lembra Paulo argumentando a respeito da “Revelação Geral”, como se diz teologicamente (Rm 1.23): “Os atributos invisíveis de Deus ...Por meio das coisas que foram criadas”):

“A vida tem um sentido oculto, certamente. Fui criado em ambiente cético, de maneira agnóstica. Diante da natureza, sinto que toda a negação é ingênua, que Deus não nos teria criado para o nada”.

O texto biográfico, sempre muito pessoal e afetivo, como não poderia deixar de ser uma narrativa feita por sua irmã, tão amada e próxima, vai descrevendo a personalidade sensível, introspectiva e gentil de Tom, menino inteligente que sofreu com o pai emocionalmente doente, mas soube desfrutar da biblioteca do avô agnóstico (que lhe punha na cama com a bênção “Deus lhe crie para o bem”), suas brincadeiras infantis e adolescentes nas praias cariocas ainda quase desertas e da preciosa companhia da irmã. Também vamos tomando contato com a postura mais séria com a música, seus estudos com mestres notáveis, seu casamento com Thereza aos 22 anos e até uma epifania interessantíssima que vivera no sítio da família, no meio do mato, quando “todo e qualquer medo cessou em seu corpo e em seu espírito. Não havia mais medo da morte...”.

E, então, Tom vai aos poucos ganhando o mundo: a Sinfonia do Rio de Janeiro, Orfeu da Conceição, João Gilberto, a parceira com Vinícius , a explosão da Bossa Nova, Frank Sinatra... Bem, o resto já sabemos: ele é o maior nome da música (eu diria, da cultura brasileira) no exterior. 1987, aos 60 anos, o “maestro soberano” - como lhe chama Chico Buarque - cada vez mais próximo da literatura, escreveu o longo poema “Chapadão”, onde lemos coisas tais como:

Vou fazer a minha casa 
No alto do Chapadão 
Vou levar o meu piano 
Que ficou no Canecão (...)

Vou fazer a minha casa 
Do alto de uma canção 
E agradecer a Deus Pai 
A sobrante inspiração (...)

Minha casa não terá 
Nem sábado nem domingo 
Todo dia é dia santo 
Todo dia é dia lindo (...)

Vou fazer o meu retiro 
Na grota do chororão 
A minha casa será 
Uma casa de oração.

Mas, como nos lembra solenemente o texto sagrado, “Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo propósito debaixo do céu; tempo de nascer e tempo de morrer” (Eclesiastes 3.1,2). Jobim adoeceu e faleceu em dezembro de 1994, por causa de complicações respiratórias e cardiológicas resultantes da cirurgia que realizara para retirar um tumor maligno na bexiga, no Hospital Mount Sinai, em Nova Iorque. Enquanto esperava o resultado dos exames e o procedimento cirúrgico, 45 dias angustiantes nos quais “todo dia um pastor evangélico brasileiro chamado Zeni o visitava. Liam juntos os Salmos”.

Os Salmos? Sim, os Salmos. Tom dissera no seu poema que desejava que sua última casa fosse uma “casa de oração”. Os Salmos são essa casa onde mora a oração, onde a alma habita e descansa, onde se aprende a oração mais profunda, honesta e transformadora. A mesma que Jesus frequentou. A mesma que homens de Deus como Santo Agostinho conheciam tão bem. Nas suas “Confissões”, a mãe de todas as biografias, o bispo de Hipona ora: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”.

Eu, que amo a obra do compositor carioca; eu, que já apreciava a sua personalidade generosa e sincera, me vi emocionado ao saber que Jobim, nas últimas semanas de vida, fez dos Salmos de Davi, a escola de oração do Povo de Deus, tanto Israel quanto a Igreja, a sua casa de oração. Os Salmos formam, como gosta de descrevê-los Eugene Peterson, “nossos modelos de oração”. Há um salmo para cada espécie de situação humana. Essas orações antigas e tão atuais são “a anatomia da alma”, na expressão consagrada de João Calvino. Ainda que Calvino, que obviamente amava o Saltério, tenha dito isto, também observava que na oração, “a linguagem nem sempre é necessária, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto e de ânimo”. É como teria dito Luther King: “É melhor uma oração sem palavras do que palavras sem oração”. Os Salmos, contudo, equilibram a oração e a palavra.

Tom descobriu isso, uma linguagem para buscar a Deus. Uma oração bíblica. O livro termina com uma cena pungente: o filho de Tom, Paulo Jobim, aguardando notícias do amado pai, ajoelhado chorando ao lado da cama, mãos postas e orando o Salmo 91: “Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo à sombra do Onipotente descansará”. Oração, especialmente os Salmos, não é para quem se acha fraco. Oração é para quem sabe que é fraco. E que precisa do Pai. Orar, ser cristão, “é chamar Deus de Pai”3. É assim que Jesus, que tanto amava os Salmos, ora e nos convida a orar.

Notas:

1. Harold Bloom 
2. Editora Nova Fronteira 
3. J. I. Packer

Gerson Borges é pastoreador: pastor evangélico, poeta/musico e educador.

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