domingo, 13 de outubro de 2013

"Todo filho é pai da morte de seu pai"

capinejarHá uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.


É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.


É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.


É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe.


É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.


E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.


Todo filho é pai da morte de seu pai.


Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.


E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.


Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.


Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.


A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.


Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.


A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.


Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.


Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?


Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.


E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.


Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.


No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:


— Deixa que eu ajudo.


Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.


Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.


Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.


Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.


Embalou o pai de um lado para o outro.


Aninhou o pai.


Acalmou o pai.


E apenas dizia, sussurrado:


— Estou aqui, estou aqui, pai!


O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.


***


O texto é de Fabricio Carpinejar. Fonte: ZeroHora.

4 comentários:

  1. vc me fez chorar Misael! =´

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  2. E olha quem escreveu... Carpinejar!
    Pode algo bom, verdadeiro e edificante vim de um "defunto"?

    Graça mano!! Sola Gratia!!

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  3. Olá Misael.

    Que texto maravilhoso,gostari de compartilhar com você o meu blog.Assim como o seu,totalmente voltado para assuntos do mundo cristão.
    Parabéns pelo blog,espero compartilhar com vpcê muitas idéias.

    ZéCarlos!!

    http://blogdozecarlos.wix.com/blogdozecarlos

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  4. Maravilhoso... Amo meus pais, cuido deles há 9 anos, sem ajuda do meu único irmão , e pretendo ampara-los até o ultimo dia de suas vidas! Lindo texto, emocionante

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