domingo, 23 de fevereiro de 2014

Quando a brasilidade encontra a nossa música

Por Antognoni Misael

Em 1968 a colonização musical na igreja brasileira dava ensaios de que estava chegando ao fim. Se antes era liturgicamente correto apenas cantar traduções de hinários estrangeiros do século XVIII ao som de órgãos à “moda antiga puritana”, a tradição foi interrompida quando um casal de americanos, Pr. Jaime Kemp e Judith Kemp, chegaram ao Brasil e fundaram um projeto através da Sepal (Serviço de Evangelização para a América Latina) que envolvia músicos universitários para saírem Brasil a fora, utilizando a música como comunicação para falarem do amor de Deus de forma alegre e descontraída. Surgia então o Vencedores Por Cristo, grupo musical vinculado a um projeto missionário de mesmo nome.

O VPC foram os nossos primeiros desbravadores - não é à toa que faço questão de instigar os amantes da música cristã a conhecê-los. Numa época em que não havia uma mídia abrangente e de rápido acesso, somados a facilidade de locomoção através de modernos meios de transporte, diversas equipes saiam pelos quatro cantos do país cantando e falando do amor de Deus. Um trabalho pioneiro, sem luxo, sem hotel pra estrela, sem avião, sem alto cachê, mas com muita vida comprometida. Viagens e mais viagens de carro, cruzando o país, muitas vezes dormindo dentro dos próprios veículos pois o dinheiro não cobria uma hospedagem digna. Digo sem medo de errar: "VPC foi a maior escola musical que a nossa música cristã pôde ter". 

Falar dessa gente é falar de: Nelson Bomilcar, Jorge Camargo, Guilherme Kerr, João Alexandre, Sérgio Pimenta, Aristeu Pires, Jorge Redher, e de tantos que fizeram parte em algum momento desta efervescente época. Em mais de 42 anos foram variadas formações e um total de mais de 40 álbuns.

O texto pode soar “retrô", mas se hoje nossa música brasileira (dividida entre os “do gospel importado” e os “da arte brasileira cristã” – e a segmentação é minha, assumo!) usufrui de total liberdade no uso dos clássicos pianos, órgãos, violões populares, baixos elétricos, guitarras, diversidade de sopros, baterias, percussões, etc., deve-se incontestavelmente a essa quebra de paradigma iniciada no fim de 60 para 70 através do VPC – e isso a nível Sul-Sudeste, já que ainda na década de 80 em algumas regiões do país, ter uma bateria no templo era algo nocivo, desprezível, ou diabólico. 

O dualismo do “sacro x profano” faiscava debates entre líderes, músicos e teólogos. Sendo assim, sacro eram órgão, cítara, harpa, violino e profano eram bateria, violão, guitarra, e mais altamente profano, eram os instrumentos de origem afro: tambor, atabaque, agogô, berimbau, etc. – vira o disco...

Para muitos estudiosos da música evangélica brasileira, o divisor de águas se deu em 1977, quando o VPC lança o LP “De Vento em Popa” - para muitos, e eu sou um destes, um dos maiores discos de nossa história musical. Ao ouvi-lo você logo notará que ali nascia nossa brasilidade vinculada à poesia, recheada de conteúdo bíblico e rica musicalidade. A capa do LP, um barco navegando em alto mar lembrava “O Barquinho” de Roberto Menescal... Citação? Quem se arrisca?! Mas ela por si só já fugia da efígie religiosa e despertava curiosidade quanto a arte contida no áudio, e, aliás, esse era um recurso proposital para que a obra transitasse facilmente no meio secular e fosse consumida naturalmente.

A arte do VPC nitidamente bebeu nos vocais do MPB4, na bossa de Jobim, nos trocadilhos de Chico Buarque, na ousadia de Gil, Caetano, na nordestinidade de Gonzaga, e em toda brasilidade possível.

Como toda mudança bagunça o velho modelo, “De vento em Popa” sofreu rejeição por parte de uma ala da igreja, mas nada que freasse a criatividade áurea da moçada. O padrão sonoro além de sofisticado em textura, instrumentação e vocais em 4 vozes, para alguns de ouvido domesticado despistava o foco que era a "Palavra", o que na verdade mostrou-se grande equívoco, pois em termos de letra, contextualização, cosmovisão bíblica e criatividade, esse disco continha apreciação, problematização e sem dúvida muita evangelização.

Sugiro a todos que escutem e redescubram suas obras, vale apena! Pra quem estranha os sons analógicos de 60 e 70, os charmosos ruídos do vinil, indico que façam caminho inveso, comecem pelo CD/DVD Sem Fronteiras - 2007, neste irão perceber a familiaridade de muitas de suas canções até gravadas nas vozes de outros intérpretes. 

Já quem ainda se sente cativo dos sons gospel do mercado atual e resiste em dar um passeio retrô, até entendo que gosto não se discute, mas só uma dica: nem tudo que é sucesso contém o essencial (principalmente falando-se de arte cristã), assim como nem tudo que é comercial é tratado como arte pela “indústria da fé”. E..., falando-se de VPC, certifiquem-se de que sua qualidade sempre esteve e estará inversamente proporcional a proximidade com o “goxpil” de hoje. Uma boa apreciação a todos.

Pra quem quer conhecer melhor ou adquirir seus produtos, acesse: http://www.vpc.com.br/website/

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Texto da Série Nossa Arte Cristã postado em 8 e junho de 2011.

3 comentários:

  1. Um dos melhores discos de todos os tempos, sem medo de errar. No céu se tiver toca discos vou querer ouvir esse disco dias e dias por toda a eternidade com Jesus.

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  2. Não se pode classificar como "RETRÔ" aquilo que é bom. Esse trabalho dos Vencedores Por Cristo é realmente, para quem entende de arte, e conceito de arte, um dos melhores discos já produzidos.

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  3. Sim, sim, tudo verdade o que você escreveu!
    Mas nem tudo foram flores para o VPC - foram proibidos de entrar em algumas igrejas, se bem me lembro, por não representarem uma "igreja" específica...não tinham bandeira, sabe?

    Igual discriminação sofreu a banda Exodos (Galhos Secos), mas esta é outra história.

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