segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Notícias de um Mundo Violento

Por Ivandro Menezes

Não é novidade que a violência é explorada largamente pelo veículos de comunicação de massa. Violência vende jornais, aumenta índices de audiência e gera cliques nas redes sociais. Porém, é politicamente incorreto dizer que gostamos da violência, que nos faz bem em alguma escala e nos alimenta cotidianamente um senso distorcido de justiça, prazer, segurança ou qualquer outra coisa a nos satisfazer.

A violência adquiriu o status de cultura, criamos uma cultura da violência a qual pertencemos ou que nos pertence em mesma medida. Não sei bem dizer quem é influenciado ou quem influencia, mas é certo que a violência nos absorve e fascina por ser parte de quem somos ou do que fingimos não ser. A relação entre a cultura e a violência e, por conseguinte, sua elaboração estética foi muito bem tratou Abner Melanias:

A banalização da violência somada à complacência distraída do telespectador produziu terreno fértil para que a cultura pop, pudesse, por meio do cinema, elevar ao status de arte a violência. [...] isso ficou evidenciado como marca registrada de diretores como Quentin Tarantino e David Fincher. A estética da violência, além de uma série de imagens editadas em ritmo acelerado com trilha sonora em decibéis absurdos, não é apenas uma opção estilística. Ao obscurecer a realidade imediata (do material, do fato em si) amplia a noção de que a violência é legítima e até mesmo pode ser usada para atingir fins nobres.

René Girard entende que o conceito mais primitivo do sagrado tem a ver com o sacrifício e da noção de morte, portanto violência. Dessa forma, a morte real ou simbólica sacraliza o bode expiatório. Para o filósofo francês, a violência constitui o verdadeiro coração e alma secreta do sagrado.O que se quer aqui não responsabilizar a cultura pop ou as mídias pela violência, muito pelo contrário. A cultura pop, de forma rasa, é um reflexo da sociedade contemporânea. Uma fotografia que passou por inúmeros filtros distorcidos para chegar ao produto que consumimos. Este processo permite a própria fundação da cultura. O sujeito, saturado por toda sorte de informação que o viola diariamente, têm, em filmes que se utilizam da estética da violência, a condição de expurgar suas emoções e participar do ritual em que simula a violência que está contida nele. A realidade objetiva está dos dois lados, o real (da vida do espectador) e do ficcional (da obra cinematográfica). Assim estabelecida, cada noção só se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente [...]¹
É fato que a violência não apenas nos cerca, mas eclode de cada de um de nós. É um momento de exteriorização, fluindo de nosso interior como uma fonte a jorrar da terra pequenas torrentes que alimentam grandes e caudalosos rios. Tal qual as fontes, não há mal em fazer jorrar a violência, pois na proporção devida é boa e desejável. Ora, como se clamaria por justiça sem a violência? Como se manteria ordem e paz entre os homens sem que a violência nos empreste a sua onipresença?

O problema da violência encontra-se quando erramos a medida, quando acreditamos que a proporcionalidade do dano deve ser a proporcionalidade da resposta. Destarte, a morte deve ser respondida com a morte, a mentira com a mentira, a traição com a traição, a maldade com a maldade, a desonestidade com desonestidade etc. Não há lugar para benevolência ou perdão, entendidas como sinais de fraqueza. Consequentemente, não há espaço para relacionamentos sérios e longínquos, mas apenas superficiais, fugazes, interesseiros, oportunistas, proveitosos. Conjugamos a religiosidade ou espiritualidade da barganha, mesmo quando confessamos o nosso ateísmo. Somos todos moldados na mesma matriz cultural, feitos na mesma fôrma, ainda que de modo artesanal, mas com características industriais.

Estranhamente, não há melhores nem piores! Apenas pessoas, apenas humanos sendo humanos. Destinados a nobreza, decaídos em suas tentativas. Voláteis por natureza, inseguros em seus passos, determinados em suas paixões, afligidos em seus freios morais. Somos bestas domesticadas pela civilização e, portanto, padronizados em moldes predeterminados.

Tentamos quebrar tais moldes, soltar as amarras, mas terminamos por repetir o que nos esquivamos para não ser. Assim, com a mão direita apontamos o outro e com a esquerda omitimos apontar em nossa própria direção. Para mim, essa é um caminho preconceito, pois precisamos encontrar no outro o que perturba em nós mesmos.

Ultimamente, nas redes sociais, notícias de violência vêm sendo respondida com violência. Não seria de espantar, haja vista a indignação ser uma forma de violência, mas o que me cansa nesse tipo de coisa é a inércia, a propriedade e pressa com que se tece tais considerações. As coisas perderam a importância, mas é de bom tom se manifestar. Não há como mergulhar no mar sem sentir o sal na pele.

O caso do jovem morto em Inhumas, no estado de Goiás, foi mais um a despertar a ira do adeptos das redes sociais. Gays afirmaram tratar-se de homofobia, neoateus afirmaram ser perseguição religiosa e, não me espantaria se religiosos afirmassem ser consequência de sua “vida de devassidão e homossexualidade”, como se vidas de jovens heterossexuais não fossem diariamente ceifadas. Por todos os lados, a agressividade parece ser a tônica da revolta causada não pela morte de um rapaz tão jovem, mas pela agressão a uma ideia, a uma fôrma, a um clichê.

“Mais um homossexual foi morto por homofobia!”, dizem uns. “Cadê o amor ao próximo desses crentes?”, provoca outro. “Se tivesse na igreja…”, profetiza outro. E nesses absolutos tão relativos, esquecemos que mais uma mãe e um pai perderam um filho, que mais um jovem perdeu o futuro, os sonhos, as expectativas, todos sufocados em um saco plástico.

Pois bem, a polícia prendeu o acusado que confessou ter tido uma briga com o rapaz com quem se relacionava. O crime foi passional, mas ninguém pensou tratar-se de paixão, de amor, de luxúria. Apontaram o defeito do outro com a mão direita, mas parecem ter esquecido a direção em que apontava a esquerda. O calor do momento transformou sua indignação em agressão, preconceito, crítica. A angústia em levantar bandeiras, em construir argumentos ad hominem, em padronizar seres humanos reduzindo-os a ideias, a preconcepções, a pretextos para advogarem suas próprias lutas e ideologias, bandeiras políticas, lutas partidárias.

No afã de mostrarmo-nos politizados, emancipados da alienação dos religiosos, porque toda alienação é religiosa, haja vista conduzir os supostos “emancipados”, leva-nos a elucubrar culpados bem parecidos com o retrato pouco nítido de nossas frustrações e complexos, demonizando grupo A ou grupo B, a sacrificar o bode expiatório da vez.

Logo nos enchemos da sede de sangue, vamos crucificar cristãos por serem homofóbicos, vamos incendiar casas de torcedoras racistas, vamos explodir as casas dos políticos corruptos. Mais uma vez, apontamos com uma mão e escondemos a outra.

A homofobia e o racismo são traços de nossa humanidade, mas nem, por isso, são aceitáveis, nem do ponto de vista legal, nem do moral e, tampouco, religioso. O meu direito de crer de modo diferente não me dá o direito de odiar quem me odeia. Se escolhi dormir e acordar ao lado de uma mulher não faz mais digno de quem escolheu dormir e acordar ao lado de outro homem. A minha cor não é sinônimo de superioridade genética, intelectual ou social. Discriminar alguém é não apenas crime, mas uma violação, mas um pecado. A diferença que nos separa é a mesma que nos une, haja vista não sermos nada além de humanos. E exatamente por isso só nos resta uma última violência como saída.

O amor é nossa última violência, porque demanda coragem de dar a outra face, de sofrer perseguição real e profunda, de encontrar e abraçar o martírio em todas as suas modalidades. Não fomos chamados a beligerância que se vê no pastor da TV! Não fomos chamados a lutar um guerra santa contra quem nos cerca, mas apenas contra nós mesmos. E não falo aqui de complacência, mas de amor. Aquele que não esconde a Verdade, mas a anuncia, não como quem maneja uma espada, um dedo em riste, mas como quem escolhe apontar o caminho que tem caminhado ao reconhecer seus delitos e pecados. No caminho cada passado é uma marca de arrependimento pela estranha consciência de ao amarmos não somos dignos de receber amor, porque se amamos entendemos que fomos amados primeiro.

Deus os abençoe!

Fonte: [Os CabraCast]

***

Ivandro Menezes paraibano de nascença,  pernambucano de passagem e baiano de destino. É professor universitário, jurista de formação, teólogo em formação, podcaster em nível maternalzinho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário